[#20] Erro 404: Colaboração não encontrada – O impacto do Triângulo Dramático nos times de desenvolvimento de software
- Sol Soares
- 30 de dez. de 2024
- 8 min de leitura

Em muitos times de tecnologia, conflitos interpessoais e desequilíbrios de responsabilidades podem prejudicar a colaboração e a entrega de projetos. Uma dinâmica comum, mas frequentemente negligenciada, é o ciclo de comportamentos disfuncionais que podem surgir em situações de pressão ou conflito.
Certa vez, trabalhei em um time em que o Tech Lead era maravilhoso. Aqui usarei o nome fictício de João. Não havia um incidente em que ele não estivesse envolvido buscando uma solução – e, geralmente, era ele quem resolvia o problema. Para qualquer assunto ou dúvida, por que consultar a documentação se poderíamos perguntar ao João? Ele se orgulhava de dizer que tinha descoberto uma forma de participar de duas reuniões ao mesmo tempo, utilizando o notebook e o celular. Ainda que João fosse admirado por sempre resolver os problemas, sua abordagem acabou criando uma dependência extrema no time, prejudicando a autonomia e a eficiência coletiva.
João não era de ferro e precisava tirar férias para descansar. O desespero que antecedia suas férias revelava a dependência prejudicial que o grupo havia desenvolvido. Nestas férias, ao contrário das anteriores em que acabava ficando online para tirar dúvidas, João decidiu desconectar totalmente. Essa decisão, embora desafiadora no curto prazo, provou-se transformadora para o time. As pessoas começaram a se movimentar mais, buscar soluções próprias e, gradualmente, desenvolveram autonomia. Mesmo após o retorno de João, os membros da equipe mantiveram suas novas responsabilidades, resultando em um time mais interdependente e autogerido.
Este caso ilustra perfeitamente um dos conceitos mais relevantes para compreender dinâmicas disfuncionais em equipes: o Triângulo Dramático de Karpman, desenvolvido pelo psicólogo Stephen B. Karpman. Esta teoria mapeia a conexão entre responsabilidade pessoal e poder em conflitos, destacando três papéis que as pessoas podem assumir: Vítima, Salvador e Perseguidor.
"Na liderança, esses papéis podem impedir a colaboração e o crescimento da equipe. É fundamental que os líderes reconheçam a importância do Triângulo Dramático para evitar conflitos, microgerenciamento e esgotamento. As estratégias incluem abordar os gatilhos, promover a comunicação aberta e aprimorar a inteligência emocional." – Jens Thiemann, Management 3.0 Facilitator
1. O Que é o Triângulo Dramático de Karpman?
O Triângulo Dramático de Karpman, mapeia interações destrutivas que podem ocorrer entre pessoas em conflito e que envolve três papéis: Vítima, Perseguidor e Salvador. As pessoas frequentemente alternam entre esses papéis de forma inconsciente, criando ciclos improdutivos que afetam de forma negativa as relações. Assim, é importante conhecer cada papel e como eles se relacionam.
Papéis no Triângulo Dramático

O papel da Vítima
A pessoa no papel de Vítima caracteriza-se por demonstrar impotência e dependência diante dos desafios. Este comportamento, embora aparentemente passivo, exerce forte influência na dinâmica do time, frequentemente atraindo Salvadores e provocando Perseguidores.
Frase típica: "Isso não é justo, não consigo fazer nada com essas condições."
Principais características do papel de Vítima
Sentimento de impotência: Acredita que está à mercê de circunstâncias externas, sem capacidade para mudar a situação.
Exemplo: "Eu não consigo avançar porque a documentação está ruim e ninguém nunca explica direito o que precisa ser feito.”
Tendência à passividade: Evita tomar decisões ou agir de forma autônoma, esperando que outros resolvam os problemas por ela.
Exemplo: Uma pessoa desenvolvedora recebe feedback sobre melhorias no código, mas em vez de tentar aplicar as sugestões, espera que alguém mostre exatamente o que fazer ou corrija por ela.
Busca por apoio ou resgate: Demonstra dependência emocional ou prática, esperando que alguém no papel de Salvador intervenha.
Exemplo: Sempre pede ajuda para tarefas que poderia aprender a realizar sozinho(a).
Foco nos problemas (em vez de soluções): Concentra-se em queixas e dificuldades, sem esforço para superar os obstáculos.
Exemplo: Durante uma reunião com o time destaca repetidamente que a integração com uma API está falhando, mas não sugere alternativas nem investiga como resolver, limitando-se a apontar a falha.
Sensação constante de injustiça: Sente que está sendo tratada de forma injusta ou que as situações são desproporcionais.
Exemplo: "Só eu recebo tarefas complicadas. Isso não acontece com ninguém mais no time."
Comunicação autodepreciativa: Expressa baixa autoestima ou dúvida constante sobre suas próprias capacidades.
Exemplo: "Eu nunca consigo entender essas tecnologias novas."
Impactos negativos do papel de Vítima
Ficar no papel de vítima impede a busca ativa por soluções e pode sobrecarregar os colegas.
Sobrecarrega o time: ao esperar que outros resolvam seus problemas, reduz a produtividade coletiva.
Inibe o crescimento pessoal: não assume responsabilidades necessárias para o desenvolvimento de habilidades.
Cria dependência emocional: alimenta a necessidade de um Salvador e perpetua o ciclo disfuncional.
Desmotiva colegas: a passividade e as queixas constantes podem gerar frustração nos outros membros do time.
O papel do Perseguidor
O papel de Perseguidor manifesta comportamentos controladores e críticos, frequentemente mascarando inseguranças através de atitudes agressivas ou intimidadoras. Este papel pode ser particularmente prejudicial em ambientes técnicos, onde a colaboração e a troca de conhecimento são essenciais.
Frase típica: "Isso é culpa sua, você deveria ter feito isso direito!"
Principais características do papel de Perseguidor
Uso de críticas e culpa: frequentemente responsabiliza os outros de forma exagerada ou injusta, muitas vezes para desviar a atenção de seus próprios erros.
Exemplo: "Esse projeto só está atrasado porque você não fez sua parte direito."
Comunicação agressiva: adota um tom autoritário, agressivo ou hostil, intimidando os outros para reforçar seu ponto de vista.
Exemplo: Durante uma reunião, levanta a voz e critica abertamente um colega por uma falha menor.
Necessidade de controle: busca controlar as situações e as pessoas, frequentemente impondo suas ideias e desconsiderando a contribuição dos outros.
Exemplo: Insiste em decidir sozinho a arquitetura de um projeto, ignorando as sugestões do time.
Dificuldade em mostrar vulnerabilidade: evita admitir falhas ou pedir ajuda, mascarando suas inseguranças com ataques ou críticas.
Exemplo: Quando seu código é apontado como problemático, reage dizendo: "Pelo menos eu não cometo erros tão básicos quanto os de vocês."
Uso de pressão e ameaças: recorre à pressão ou ameaças para alcançar seus objetivos, muitas vezes criando um ambiente de medo ou tensão.
Exemplo: "Se você não entregar isso até amanhã, vou ter que falar com a gerente sobre sua falta de comprometimento."
Foco na punição, não na solução: concentra-se em encontrar culpados em vez de buscar resolver os problemas de maneira construtiva.
Exemplo: Em vez de ajudar o time a entender a causa de um bug e aprender com ele, critica duramente quem o introduziu.
Impactos negativos do papel de Perseguidor
Deteriora o clima organizacional: cria um ambiente de tensão e medo, prejudicando a colaboração e inibindo a inovação.
Desmotiva a equipe: a constante crítica e pressão reduzem a confiança e a produtividade dos colegas.
Impede resoluções eficazes: foca em conflitos pessoais e em achar culpados, em vez de trabalhar em soluções práticas.
Gera ressentimento: as ações do Perseguidor frequentemente levam a rupturas nas relações e à falta de confiança.
O papel do Salvador
O Salvador caracteriza-se pela compulsão em ajudar, mesmo quando não solicitado, frequentemente negligenciando suas próprias responsabilidades. Em ambientes de desenvolvimento, este papel pode manifestar-se através de práticas que, embora bem-intencionadas, prejudicam o crescimento do time. Frase típica: "Deixa que eu resolvo isso para você!"
Principais características do papel de Salvador
Necessidade de resolver os problemas dos outros: assume responsabilidades alheias para se sentir útil ou valorizado, mesmo quando a outra pessoa é capaz de resolver sozinha.
Exemplo: Uma pessoa desenvolvedora corrige o código de um colega sem explicar o que foi feito ou dar a oportunidade de aprendizado.
Busca por validação ou aprovação: sente que sua identidade ou valor depende de ser indispensável para os outros.
Exemplo: Alguém do time está com dificuldades em finalizar uma funcionalidade e ele se oferece para terminá-la, mesmo já sobrecarregado(a), esperando ser reconhecido(a) como o "herói" que salvou a entrega do time.
Dificuldade em dizer "não”: assume tarefas ou responsabilidades que não são suas para evitar desapontar ou parecer insensível.
Exemplo: O gestor solicita que todos compareçam ao escritório para uma reunião. Mesmo acreditando que a reunião poderia ser feita remotamente e estando sem condições de ir, o Salvador aceita sem questionar para evitar parecer descomprometido ou causar desconforto.
Evita conflitos ao custo de assumir mais trabalho: prefere fazer o trabalho por outra pessoa para evitar confrontos ou conversas difíceis.
Exemplo: Durante um code review, ao identificar problemas, o Salvador prefere ajustar o código por conta própria, em vez de apontar os erros e orientar sobre como melhorar, para evitar uma conversa potencialmente desconfortável.
Falta de confiança na capacidade dos outros: tende a subestimar ou ignorar a habilidade alheia de resolver problemas, reforçando a dependência.
Exemplo: Diante de um bug crítico em produção ele decide corrigir sozinho, acreditando que ninguém mais é capaz de resolvê-lo adequadamente, mesmo que outros membros tenham experiência e disponibilidade.
Ignora os próprios limites: frequentemente se sobrecarrega, colocando as necessidades dos outros acima das suas próprias.
Exemplo: Trabalha até tarde ajudando o time, deixando de lado suas prioridades pessoais ou profissionais.
Impactos negativos do papel de Salvador
Cria dependência: ao assumir responsabilidades, impede que outros desenvolvam autonomia e habilidades.
Gera ressentimento: pode se sentir explorado ou desvalorizado quando o esforço não é reconhecido.
Prejudica a produtividade: tira o foco das próprias tarefas, comprometendo resultados pessoais e do time.
Desempodera os outros: limita o crescimento do time ao centralizar conhecimento e soluções.
2. Identificando a triangulação no time
O Triângulo Dramático pode se manifestar no dia a dia de um time de desenvolvimento por meio de padrões de comportamento disfuncionais que impactam a produtividade e o bem-estar. Reconhecer esses sinais permite que Tech Leaders intervenham proativamente para criar um ambiente de colaboração e crescimento. Abaixo, explore os principais sinais comportamentais e dinâmicas que podem indicar a presença desse ciclo prejudicial.

Agora que entendemos como identificar os sinais do Triângulo Dramático, é hora de explorar estratégias para quebrar essas dinâmicas prejudiciais.
3. Como quebrar o ciclo do Triângulo Dramático
Quebrar o ciclo do Triângulo Dramático requer um esforço consciente e consistente. Como líder, seu papel é fundamental em identificar e transformar essas dinâmicas prejudiciais em interações mais saudáveis e produtivas. A seguir, apresento estratégias práticas e ferramentas que podem ajudar seu time a desenvolver relações mais maduras e colaborativas.
Construindo consciência individual
A base para quebrar o ciclo começa com autoconhecimento e reflexão.
Identifique seus gatilhos emocionais e observe como você se comporta em situações de estresse.
Reserve tempo para reflexão após reuniões importantes e conversas difíceis.
Busque feedback honesto do time, de pares e mentores.
Fortalecendo a comunicação
Uma comunicação clara e assertiva é essencial para evitar dinâmicas prejudiciais.
Documente decisões e acordos de forma transparente.
Pratique Comunicação Não-Violenta (CNV) nas interações diárias.
Crie espaços seguros para feedback bilateral.
Incentive a curiosidade e questionamento construtivo e evite críticas destrutivas e julgamentos.
Desenvolvendo autonomia
Autonomia é construída gradualmente através de confiança e capacitação.
Delegue tarefas progressivamente mais complexas.
Estabeleça rodízio na facilitação das cerimônias do time.
Incentive pair programming com rotação de pares.
Promova sessões de compartilhamento de conhecimento.
4. Conclusão
O Triângulo Dramático, quando presente em times de desenvolvimento, pode criar ciclos prejudiciais que impactam tanto a produtividade quanto o bem-estar da equipe. Reconhecer e atuar sobre esses padrões é fundamental para construir times mais saudáveis e eficientes.
A transformação de dinâmicas disfuncionais requer compromisso contínuo com práticas que promovam autonomia, colaboração e crescimento. Como demonstrado no caso do João, mudanças positivas são possíveis quando há consciência e ação intencional para quebrar ciclos prejudiciais.
O sucesso a longo prazo depende da capacidade de criar ambientes onde cada membro possa contribuir de forma autêntica e construtiva, livre dos papéis limitantes do Triângulo Dramático. Isso se traduz em times mais resilientes, inovadores e capazes de entregar valor de forma sustentável.
5. Referências
Nilima Bhat, Raj Sisodia. Liderança Shakti: o equilíbrio do poder feminino e masculino nos negócios. Editora Alta Books. Rio de Janeiro, 2019.
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